Antônio Frederico de
Castro Alves é o famoso Castro Alves, o poeta dos escravos. É considerado por
muitos, o escritor responsável por uma poesia social. Os poetas das gerações românticas
anteriores defenderam uma ótica idealizada e ufanista do Brasil. Diferente deles...
Castro Alves mostrou a crueldade da escravidão dos negros, a prepotência, a violência,
o abuso, a arbitrariedade e a incompreensão da população brasileira... Alguns exemplos
de obras relevantes são: "As espumas flutuantes (1870)"; "A cachoeira de Paulo
Afonso (1876)"; "Os escravos (1883)"; "Obras completas (1921)" em que consta o
livro inédito Hinos do Equador. Por fim, o melhor do poeta romântico “O navio
negreiro”, é parte da obra "Os escravos (1883)". É uma das mais categóricas considerações
realizadas na literatura brasileira, em relação à vivência de um país, que foi o
último, a decretar o fim da escravidão.
Sérgio Lopes (Jornalista, professor, especialista em (TV, Cinema e Mídias Digitais) e em Letras (Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa e Inglesa
O Navio Negreiro
(Castro Alves)
I
'Stamos em pleno mar...
Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada
borboleta;
E as vagas após ele
correm... cansam
Como turba de infantes
inquieta.
'Stamos em pleno mar...
Do firmamento
Os astros saltam como
espumas de ouro...
O mar em troca acende
as ardentias,
— Constelações do
líquido tesouro...
'Stamos em pleno mar...
Dois infinitos
Ali se estreitam num
abraço insano,
Azuis, dourados,
plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu?
qual o oceano?...
'Stamos em pleno mar. .
. Abrindo as velas
Ao quente arfar das
virações marinhas,
Veleiro brigue corre à
flor dos mares,
Como roçam na vaga as
andorinhas...
Donde vem? onde vai?
Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é
tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis
o pó levantam,
Galopam, voam, mas não
deixam traço.
Bem feliz quem ali pode
nest'hora
Sentir deste painel a
majestade!
Embaixo — o mar em cima
— o firmamento...
E no mar e no céu — a
imensidade!
Oh! que doce harmonia
traz-me a brisa!
Que música suave ao
longe soa!
Meu Deus! como é
sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim
boiando à toa!
Homens do mar! ó rudes
marinheiros,
Tostados pelo sol dos
quatro mundos!
Crianças que a procela
acalentara
No berço destes pélagos
profundos!
Esperai! esperai!
deixai que eu beba
Esta selvagem, livre
poesia
Orquestra — é o mar,
que ruge pela proa,
E o vento, que nas
cordas assobia...
..........................................................
Por que foges assim,
barco ligeiro?
Por que foges do pávido
poeta?
Oh! quem me dera
acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo
cometa!
Albatroz! Albatroz!
águia do oceano,
Tu que dormes das
nuvens entre as gazas,
Sacode as penas,
Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz!
dá-me estas asas.
II
Que importa do nauta o
berço,
Donde é filho, qual seu
lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho
mar!
Cantai! que a morte é
divina!
Resvala o brigue à
bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da
mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa
após.
Do Espanhol as
cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças
morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho
indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e
traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de
Tasso,
Junto às lavas do
vulcão!
O Inglês — marinheiro
frio,
Que ao nascer no mar se
achou,
(Porque a Inglaterra é
um navio,
Que Deus na Mancha
ancorou),
Rijo entoa pátrias
glórias,
Lembrando, orgulhoso,
histórias
De Nelson e de
Aboukir.. .
O Francês —
predestinado —
Canta os louros do
passado
E os loureiros do
porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses
cortou,
Homens que Fídias
talhara,
Vão cantando em noite
clara
Versos que Homero gemeu
...
Nautas de todas as
plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ...
III
Desce do espaço imenso,
ó águia do oceano!
Desce mais ... inda
mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no
brigue voador!
Mas que vejo eu aí...
Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ...
Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e
vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
IV
Era um sonho
dantesco... o tombadilho
Que das luzernas
avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros...
estalar de açoite...
Legiões de homens
negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres,
suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas
bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas
e espantadas,
No turbilhão de
espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra
irônica, estridente...
E da ronda fantástica a
serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se
no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o
chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma
só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira,
outro enlouquece,
Outro, que martírios
embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão
manda a manobra,
E após fitando o céu
que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os
densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o
chicote, marinheiros!
Fazei-os mais
dançar!..."
E ri-se a orquestra
irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a
serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco
as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições,
preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
V
Senhor Deus dos
desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor
Deus!
Se é loucura... se é
verdade
Tanto horror perante os
céus?!
Ó mar, por que não
apagas
Co'a esponja de tuas
vagas
De teu manto este
borrão?...
Astros! noites!
tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes
desgraçados
Que não encontram em
vós
Mais que o rir calmo da
turba
Que excita a fúria do
algoz?
Quem são? Se a estrela
se cala,
Se a vaga à pressa
resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite
confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima,
audaz!...
São os filhos do
deserto,
Onde a terra esposa a
luz.
Onde vive em campo
aberto
A tribo dos homens
nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres
mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes,
bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem
razão. . .
São mulheres
desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas,
alquebradas,
De longe... bem longe
vêm...
Trazendo com tíbios
passos,
Filhos e algemas nos
braços,
N'alma — lágrimas e
fel...
Como Agar sofrendo
tanto,
Que nem o leite de
pranto
Têm que dar para
Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças
lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a
caravana,
Quando a virgem na
cabana
Cisma da noite nos véus
...
... Adeus, ó choça do
monte,
... Adeus, palmeiras da
fonte!...
... Adeus, amores...
adeus!...
Depois, o areal
extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte
imenso
Desertos... desertos
só...
E a fome, o cansaço, a
sede...
Ai! quanto infeliz que
cede,
E cai p'ra não mais
s'erguer!...
Vaga um lugar na
cadeia,
Mas o chacal sobre a
areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao
leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas
d'amplidão!
Hoje... o porão negro,
fundo,
Infecto, apertado,
imundo,
Tendo a peste por
jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um
finado,
E o baque de um corpo
ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de
maldade,
Nem são livres p'ra
morrer. .
Prende-os a mesma
corrente
— Férrea, lúgubre
serpente —
Nas roscas da
escravidão.
E assim zombando da
morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
Senhor Deus dos
desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor
Deus,
Se eu deliro... ou se é
verdade
Tanto horror perante os
céus?!...
Ó mar, por que não
apagas
Co'a esponja de tuas
vagas
Do teu manto este
borrão?
Astros! noites!
tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
...
VI
Existe um povo que a
bandeira empresta
P'ra cobrir tanta
infâmia e cobardia!...
E deixa-a
transformar-se nessa festa
Em manto impuro de
bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas
que bandeira é esta,
Que impudente na gávea
tripudia?
Silêncio. Musa...
chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave
no teu pranto! ...
Auriverde pendão de
minha terra,
Que a brisa do Brasil
beija e balança,
Estandarte que a luz do
sol encerra
E as promessas divinas
da esperança...
Tu que, da liberdade
após a guerra,
Foste hasteado dos
heróis na lança
Antes te houvessem roto
na batalha,
Que servires a um povo
de mortalha!...
Fatalidade atroz que a
mente esmaga!
Extingue nesta hora o
brigue imundo
O trilho que Colombo
abriu nas vagas,
Como um íris no pélago
profundo!
Mas é infâmia demais!
... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do
Novo Mundo!
Andrada! arranca esse
pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta
dos teus mares!
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